Basta ser homem, estar em sociedade e estar rodeado de pessoas falantes  que a língua - este sistema de comunicação inigualável - emerge. Ela se  instaura e toma conta de todos nós, de nossos pensamentos, de nossos  desejos e de nossas ações. Falar faz parte do nosso cotidiano, de nossa  vida. A troca por meio das formas linguísticas é a nossa dádiva maior,  nossa característica básica. É por meio de uma língua que o ser humano  se individualiza, em um movimento contínuo de busca de identidade e de  distinção. É isso, enfim, que nos torna humanos e nos diferencia de  todos os outros animais. 
Não existe homem sem língua. Mesmo as pessoas com deficiências diversas adotam um sistema de comunicação. Quem é surdo, por exemplo, usa a linguagem de sinais. Sendo assim, não existe razão para que tenhamos preconceito com relação a qualquer variedade linguística diferente da nossa. Preconceito linguístico é o julgamento depreciativo, desrespeitoso, jocoso e, consequentemente, humilhante da fala do outro ou da própria fala. O problema maior é que as variedades mais sujeitas a esse tipo de preconceito são, normalmente, as com características associadas a grupos de menos prestígio na escala social ou a comunidades da área rural ou do interior. Historicamente, isso ocorre pelo sentimento e pelo comportamento de superioridade dos grupos vistos como mais privilegiados, econômica e socialmente.
Então,  há críticas negativas em relação, por exemplo, à falta de concordância  verbal ou nominal (As coisa tá muito cara); ao "r" no lugar do "l"  (Framengo); à presença do gerúndio no lugar do infinitivo (Eu vô tá  verificano); ao "r" chamado de caipira, característico da fala de amplas  áreas mineiras, paulistas, goianas, mato-grossenses e paranaenses - em  franca expansão, embora sua extinção tenha sido prevista por linguistas.  Depreciando-se a língua, deprecia-se o indivíduo, sua identidade, sua  forma de ver o mundo. 
O preconceito linguístico - o mais sutil de todos eles - atinge um dos  mais nobres legados do homem, que é o domínio de uma língua. Exercer  isso é retirar o direito de fala de milhares de pessoas que se exprimem  em formas sem prestígio social. Não quero dizer com isso que não temos o  direito de gostar mais, ou menos, do falar de uma região ou de outra,  do falar de um grupo social ou de outro. O que afirmo e até enfatizo é  que ninguém tem o direito de humilhar o outro pela forma de falar.  Ninguém tem o direito de exercer assédio linguístico. Ninguém tem o  direito de causar constrangimento ao seu semelhante pela forma de falar.  
A Constituição brasileira estabelece que  "ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou  degradante''. Sendo assim, interpreto eu que qualquer pessoa que for  vítima de preconceito linguístico pode buscar a lei maior da nação para  se defender. Até porque, sob essa ótica, o preconceito linguístico se  configura como um tratamento desumano e degradante - uma tortura moral.  Se necessário for, poderíamos até propor uma lei específica contra esse  tipo de preconceito, apenas para ficar mais claro que qualquer pessoa  tem o direito de buscar a justiça quando for vítima de qualquer  iniciativa contra o seu modo de se expressar. 
Sei que muitos devem achar que isso é bobagem, que todos devem deixar de  falar errado. Mas todo mundo tem direito de se expressar, sem  constrangimento, na forma em que é senhor, em que tem fluência, em que é  capaz de expressar seus sentimentos, de persuadir, de manifestar seus  conhecimentos. Enfim, de falar a sua língua ou a sua variante dela. 
SCHERRE, Marta. O preconceito linguístico deveria ser crime. Revista Galileu. Disponível em: http://revistagalileu.globo.com/Revista/Common/0,,EMI110515-17774,00-O+PRECONCEITO+LINGUISTICO+DEVERIA+SER+CRIME.html. Acesso em: 29/10/2011.





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