terça-feira, 6 de março de 2012

Senhor Procurador, leia o verbete “dicionário”

O caso Houaiss e a tentativa de apagamento da História

 

Eliane Brum*
Na obra-prima de Ray Bradbury, “Fahrenheit 451”, o futuro se transformou em um mundo sem livros. Tudo o que querem que as pessoas saibam é transmitido por imensas telas de TV, onde parte da população passa os dias vivendo a vida dos personagens de ficção. Nessa sociedade totalitária, Guy Montag é um bombeiro. 

Não um que apaga fogo, mas um que faz fogueiras. A missão de Guy é queimar livros. “451” refere-se à temperatura, em Fahrenheit, na qual um livro incendeia. Bradbury não poderia imaginar a internet ao escrever o livro em 1953, no contexto da Guerra Fria. Assim, seu pesadelo literário era incapaz de alcançar o que aconteceu na semana passada, quando os verbetes das palavras “cigano” e “negro” foram suprimidos da versão eletrônica do mais completo dicionário brasileiro, o Houaiss. Hoje, nesse futuro que chegou, não é mais necessário fogo, mas apenas um clique, para apagar a História. Muito mais “limpo”, rápido e silencioso.

Tudo começou quando o procurador da República Cleber Eustáquio Neves, do Ministério Público Federal de Uberlândia, em Minas Gerais, requereu que o dicionário Houaiss fosse tirado de circulação e que a tiragem, venda e distribuição das novas edições fossem suspensas enquanto não tivessem sido eliminadas as “expressões pejorativas e preconceituosas” do verbete “cigano”. O procurador atendia ao pedido de um cidadão, feito em 2009. No Houaiss – e eu estou tratando o meu exemplar em papel com cuidados maternos diante da iminência de seu assassinato -, este é o verbete da palavra “cigano”, neste momento uma relíquia cultural que compartilho com vocês:

Cigano adj 1 Relativo ao ou próprio do povo cigano; zíngaro <música c.> <vida c.> <esperteza c.> Adj. s.m. 2 relativo a ou indivíduo dos ciganos, povo itinerante que emigrou do Norte da Índia para o oeste (antiga Pérsia, Egito), de onde se espalhou pelos países do Ocidente; calom, zíngaro 3 p.ext. que ou aquele que tem vida incerta e errante; boêmio <meus parentes c. não pensam no dia de amanhã> <viver como c.> 4 p.ana. vendedor ambulante de quinquilharias; mascate 5 (1899) pej. que ou aquele que trapaceia; velhaco, burlador 6 pej. que ou aquele que faz barganha, que é apegado ao dinheiro; agiota, sovina 7 que ou o que serve de guia ao rebanho (diz-se de carneiro) 8 LING m.q. ROMANI ETIM fr. cigain (sXV, atual tsigane ou tzigane, estas por infl. Do al. Zigeuner), do gr. biz. athígganos ‘intocável’, nome dado a certo grupo de heréticos da Ásia Menor, que evitava o contato com estranhos, a que os ciganos foram comparados quando de sua irrupção na Europa central; c.p. tur. cigian, romn, zigan, húng. cigány, it, zingano (a1470, atual zíngaro); f.hist. 1521 cigano, 1540 cigano, 1708 sigano COL bando, cabilda, ciganada, ciganagem, ciganaria, gitanaria, maloca, pandilha HOM cigano (fl.ciganar)”

Reproduzo o verbete completo para que todos tenham acesso ao que foi suprimido da versão eletrônica e, se a vontade do procurador vencer, de todas as versões, inclusive a impressa. Mas reproduzo também para que aqueles que não cultivam o hábito de pesquisar em dicionários possam compreender qual é a missão dessas maravilhas. O procurador Cleber Eustáquio Neves postulou o extermínio da acepção de número 5: “(1899) pej. que ou aquele que trapaceia; velhaco, burlador”. E também da 6: “pej. que ou aquele que faz barganha, que é apegado ao dinheiro; agiota, sovina”. O “pej.” colocado por Houaiss, em ambas as acepções, é um aviso de que são significados “pejorativos”. Assim como Houaiss informa ao leitor quando esta ou aquela definição é arcaica ou vem desta ou daquela língua ou refere-se a este ou àquele episódio histórico. 

Como quem leu o verbete completo facilmente percebe, um dicionário tem como vocação dar todos os sentidos de uma palavra na língua. Tanto no presente, como no passado. Um dicionário é aquele que narra a trajetória, a evolução e as mudanças de significado de cada palavra ao longo de seu percurso no tempo e no espaço. Um dicionário conta a vida das palavras, com tudo o que a vida tem. Eliminar qualquer sentido de uma palavra é eliminar um pedaço de sua história – fazer de conta que essa história não aconteceu. Os próprios ciganos não deveriam querer que isso acontecesse, porque, ao apagar um sentido estarão eliminando uma das provas de que, em determinado período histórico, foram vistos como “trapaceadores, velhacos e burladores”. Ou “apegados ao dinheiro, agiotas, sovinas”.

Do mesmo modo que os negros não devem querer que seja apagada a escravidão da sua história, assim como os preconceitos e injustiças sociais que dela decorreram e que estão explicitados em algumas acepções do verbete “negro”. É por causa das consequências desses acontecimentos históricos, expressadas também em sentidos pejorativos para a palavra “negro”, que foi construído todo um movimento de resistência que pressionou – e pressiona – por políticas públicas. Mas, principalmente, porque não se apaga a história apagando-se sentidos de palavras. Se fosse assim, seria fácil mudar a vida.
 
Cabe a pessoas e grupos conferir novos significados às palavras no embate da História – e cabe ao dicionário registrar esses novos significados, sem, porém, eliminar a memória dos outros. A História é carregada por cada um que a viveu ou a herdou, seja um indivíduo ou uma sociedade. A tentativa de esquecimento nunca serve às vítimas – sempre aos algozes. Convenientemente se “esquece” as partes que não interessa lembrar – ou pior, apaga-se. Se teses como a do MPF de Uberlândia vingarem, os dicionários serão reduzidos à metade, assim como as enciclopédias, e não sobrará um livro de história inteiro.

Nas obras de ficção escritas no passado sobre um futuro possível e sempre assustador, porque cerceador de liberdades e dotado de uma humanidade robótica, tudo se passava em regimes totalitários. Como no próprio “Fahrenheit 451”, já citado, e no sempre lembrado “1984”, de George Orwell. Nenhum desses autores imaginou que coisas assim se passariam em uma democracia. Nem nós imaginaríamos que o Ministério Público, uma instituição democrática com reconhecidos serviços prestados em tantas áreas estratégicas para o país, faria algo assim. Esqueceu-se de que, se o totalitarismo é terrível, a ignorância também o é. E a ignorância não escolhe regime político.

O ataque ao Houaiss e à memória das palavras é um caso de ignorância. Dizem – e os números provam – que é dificílimo ser aprovado nos concursos para o Ministério Público Federal. Bem, sugiro que as próximas provas incluam uma pergunta sobre o que é um dicionário. Alguém que vai ocupar um posto tão importante precisa saber o que é um dicionário. E não estou sendo irônica. Gostaria de ter a escolha de ser, mas já ultrapassamos essa possibilidade quando o crime de ignorância foi cometido. E os verbetes “cigano” e “negro” – este último nem sequer é objeto da ação – desapareceram da versão eletrônica do Houaiss.

É preciso prestar bastante atenção em outro aspecto desse caso. O Houaiss foi atingido porque não cumpriu a determinação. Segundo o MPF de Uberlândia, em entrevista à Folha de S. Paulo, foram enviados "diversos ofícios e recomendações" às editoras para que mudassem o verbete “cigano” nos dicionários que editam. De acordo com o órgão, as editoras Globo e Melhoramentos atenderam às recomendações. A Objetiva, que publica o Houaiss, não. A editora teria alegado que não poderia fazer a mudança porque a publicação é editada pelo Instituto Antônio Houaiss e que ela é apenas a detentora dos direitos relativos à publicação.

O que isso significa? Que os sentidos históricos, mas considerados “preconceituosos e racistas” pelo MPF, já foram eliminados de outros dicionários. E só ficamos sabendo dessa afronta à memória da nossa língua porque o Houaiss não foi modificado. Se tivesse sido, nem saberíamos. Teríamos ficado mais pobres – porque todos ficamos mais pobres quando nosso idioma é saqueado de sua história – sem saber. Por não ter cumprido a determinação do MPF, a editora Objetiva e o Instituto Antônio Houaiss poderão ter de pagar uma indenização de R$ 200 mil por danos morais coletivos. A Justiça Federal ainda não se pronunciou. E a esperança é de que esta conheça o significado do verbete “dicionário”.

Na última sexta-feira (2/3), o alerta de que os verbetes “cigano” e “negro” haviam desaparecido da versão eletrônica do Dicionário Houaiss se espalhou pela rede social Twitter. No sábado, a notícia foi registrada pela imprensa. O diretor do Instituto Antonio Houaiss, Mauro Villar, afirmou à Folha de S. Paulo que não partiu dele a ordem para a retirada dos verbetes. Villar garantiu que nunca teria suprimido as definições porque elas são "espelhos que refletem ocorrências" na língua. De quem partiu a ordem, então? E por quê? 

O fato é que, até a manhã desta segunda-feira em que publico essa coluna, quem digitasse as palavras “cigano” e “negro” se depararia com o seguinte aviso: “A palavra não foi encontrada”. É curioso que os ciganos, que tantas vezes na História foram perseguidos e exterminados, agora vivam, pela própria vontade, uma espécie de genocídio pela palavra. O verbete – ou tudo o que são e viveram e que está contido na palavra “cigano” – foi apagado da versão eletrônica do Houaiss. Faz pensar, não?

Posso estar sendo muito otimista, mas não acredito que esse absurdo vá perdurar. Imagino que logo os verbetes voltem à versão eletrônica – e cabe a nós denunciar se o conteúdo retornar alterado e empobrecido. Acredito também que as editoras que já retiraram os termos pejorativos dos dicionários que editam voltarão a incluí-los por dignidade e respeito à língua e seus falantes. Assim como espero que o Houaiss siga resistindo na integridade de sua versão impressa e de sua vocação. Tampouco acredito que a Justiça Federal acolha tal sandice. O caso já foi longe demais, para constrangimento de todos.

O perigo maior mora no fato de que agressões desse porte, devagar e silenciosamente, vão impondo a pior de todas as censuras: a autocensura. Quem fizer a revisão periódica do Dicionário Houaiss pode preferir não comprar a briga numa próxima vez. Assim como quem retirou o verbete “cigano” da versão eletrônica já deu um passo além e, por precaução, suprimiu também o verbete “negro”. A autocensura vem se imiscuindo na sociedade brasileira com mais frequência e empenho do que a maioria de nós consegue perceber. E esse tipo de censura, por ser insidiosa, é muito mais difícil de combater.

Em 2010, testemunhamos a tentativa de retirar um livro infantil de Monteiro Lobato das escolas por trazer conteúdo “racista”. Da mesma maneira, um conto de Ignácio de Loyola Brandão e um livro de Monique Revillion foram censurados em escolas de ensino médio porque tinham “sexo” e “violência”, respectivamente, em seus conteúdos. Na ocasião, escrevi sobre esses casos aqui.

Os protestos, especialmente com relação à obra de Monteiro Lobato, foram veementes na época. Mas, conversando com gente do mercado editorial, soube que o pior já começa a acontecer. Em um país que consome tão poucos livros quanto o Brasil, o melhor negócio para as editoras é conseguir incluir uma obra em algum dos programas governamentais de leitura. O governo – federal ou estadual – costuma encomendar uma tiragem alta. Para terem suas obras aprovadas na acirrada disputa desses programas, algumas editoras já começam a “enquadrar” os seus livros no politicamente correto para terem mais chance – ou apenas inscrever peças que se enquadrem, mesmo que exista outra com qualidade maior, mas, por exemplo, com uma cena de sexo.

Faz sentido supor que a equipe que escolhe as obras que serão aprovadas – mesmo que isso não seja pronunciado e, às vezes, seja até individual e inconsciente – vá eleger aquelas cujo conteúdo não possa dar nenhum tipo de incomodação ou polêmica. Para que se arriscar, afinal? Da mesma forma que bibliotecários de escolas, sejam públicas ou privadas, passaram a se policiar ao escolher os livros encomendados para não se indispor com os pais ou mesmo serem afastados pela direção – como já aconteceu no interior de São Paulo.

Por mais que sejamos otimistas com relação aos seres humanos, sabemos que a maioria não vai se lembrar de que seu compromisso maior é com a qualidade da educação e da literatura que promovem. Ao contrário, vai preferir garantir sua tranquilidade, seu emprego e, no caso de algumas editoras, seus lucros. É assim que a censura vai se imiscuindo na vida democrática. E, claro, como possivelmente diria o procurador da República Cleber Eustáquio Neves, “é para o nosso bem”

Os tempos são perigosos. Se nós – todos nós – não ficarmos vigilantes, continuaremos a ter nossa memória e cultura roubadas. Se o chefe do bombeiro Guy Montag, do “Fahrenheit 451”, sonhasse que um dia bastaria um clique na tecla “deletar” para acabar com um mundo inteiro de sentidos, talvez se tornasse o homem mais feliz do mundo. É curioso que atos ocorridos dentro de uma democracia sejam o sonho mais perfeito dos mais truculentos ditadores. Um clique. E nada mais.

 * Eliane Brum, jornalista, escritora e documentarista. Ganhou mais de 40 prêmios nacionais e internacionais de reportagem. É autora de um romance - Uma Duas (LeYa) - e de três livros de reportagem: Coluna Prestes – O Avesso da Lenda (Artes e Ofícios), A Vida Que Ninguém Vê (Arquipélago Editorial, Prêmio Jabuti 2007) e O Olho da Rua (Globo). E codiretora de dois documentários: Uma História Severina e Gretchen Filme Estrada. elianebrum@uol.com.br
@brumelianebrum  (Foto: ÉPOCA)

  

BRUM, Eliane. Senhor Procurador, leia o verbete “dicionário”. Revista Época. Disponível em: http://revistaepoca.globo.com/Sociedade/eliane-brum/noticia/2012/03/senhor-procurador-leia-o-verbete-dicionario.html. Acesso em: 06/03/2012.

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