Se o dilema "espelhamento ou construção" na relação entre linguagem e realidade social estimulou debates por décadas, o que dizer da relação entre a visão de mundo do professor e o ensino?
Muito já se tem dito sobre o fato de que toda prática pedagógica está
sempre baseada em algum posicionamento político-ideológico. O ensino de
língua portuguesa não foge à regra, tendo, nesse caso, a raiz de tal
posicionamento construída a partir da concepção de língua que o/a
professor/a vai adotar. Você já parou para pensar nisso?
A edificação das principais teorias que conhecemos hoje sobre a
língua se deve a uma série de esforços teóricos que surgiram no rastro
de vários estudos desenvolvidos durante o século XX. Podemos resumir
tais estudos em três macro concepções que orientam a linguística
contemporânea e, consequentemente, o ensino de língua. Vamos
conhecê-las.
Por ordem cronológica, as seguintes concepções vêm se
apresentando como hegemônicas nas diversas investigações científicas com
a linguagem.
1. Língua como expressão do pensamento
Nessa concepção, a língua é produzida mentalmente de maneira
individual, intrínseca e sob a organização lógica do raciocínio. As
atividades de linguagem se realizam nessa perspectiva independentemente
das circunstâncias situacionais, sócio-históricas, culturais e políticas
em que ocorrem.
2. Língua como um instrumento de comunicação
Opondo-se à primeira concepção, esta segunda visão sobre a língua a
entende como um conjunto de códigos autônomos e externos ao indivíduo,
motivados socialmente, que serve essencialmente para a troca de
informações (comunicação). Entretanto, seu funcionamento também
independe do contexto de realização.
3. Língua como interação social
Já esta terceira concepção compreende a língua como uma atividade
social não somente usada para comunicar, mas também para realizar ações
através da interação social e cognitiva entre os falantes. Esta visão
leva em conta as situações de interlocução nas quais a língua se realiza
e a influência de fatores de diversas ordens no curso dessas situações.
Mas de que maneira podemos perceber a intervenção
dessas três concepções no ensino de língua portuguesa? Até que ponto o
modo como o/a educador/a concebe a linguagem influenciará na forma de
educar?
Visão de mundo e educação
Vejamos. Em um de seus memoráveis livros, O texto na sala de aula,
o professor da Unicamp João Wanderley Geraldi apresenta a diferença
entre ensinar uma língua e ensinar metalinguagem. Nele, o mestre Geraldi
defende que a postura do docente dentro da sala de aula evidencia seu
posicionamento político e isso interfere também significativamente nos
métodos e conteúdos que escolhe. Em outras palavras, como expomos, isso
se refere à ideia de que toda prática pedagógica se articula através de
uma opção política.
Para ele, a forma de enxergar a sociedade influencia
diretamente na maneira de ensinar e tudo que a envolve. Há, por
exemplo, uma estreita relação entre o baixo nível do desempenho
linguístico por estudantes e o conceito de língua difundido na escola.
Eis aí a nossa principal questão! Muito do aprendizado de nossos alunos
com a linguagem depende da forma como abordamos o uso e a reflexão da
língua em sala de aula.
Em linhas gerais, podemos dizer que o efeito do ensino de língua
portuguesa variará a depender da maneira que o/a professor/a conduzir
político-ideologicamente a sua prática pedagógica, isto é, a depender da
escolha de estratégias que vão desde a seleção de conteúdos até o modo
de avaliação. E isso tudo, ainda que o/a docente não perceba, está
ligado à concepção que ele/ela adotar. Conceber a língua como mecanismo
da expressão do pensamento ou código para comunicação recairá no ensino
reducionista ou, como chamamos, formalista, mas entender a língua como
prática social será o primeiro passo para estudá-la de uma forma mais
explanatória e compreendê-la como um processo intersubjetivo,
contextualizado, funcional e, portanto, sob uma abordagem funcionalista.
FORMALISMO
Vamos entender um pouco melhor esses dois paradigmas. No primeiro
caso - paradigma formalista - a língua é concebida como um fenômeno
suficiente em si, independente de qualquer fator externo a ela, já no
segundo - paradigma funcionalista- a compreendemos como uma prática
interconectada a várias outras da vida social, sem as quais não seria
possível se manifestar. Ambos fundamentos agendam suas pesquisas
distintamente, caracterizando seu objeto de estudo e instituindo seus
objetivos de maneira oposta entre si.
Ao ensino formalista interessa descrever ou mapear a manifestação
da linguagem em termos de compreensão dos aspectos imanentes aos
textos, desconsiderando a intervenção dos elementos históricos,
ideológicos e culturais na organização interna do sistema linguístico.
Por exemplo, caso o/a educador/a pretenda discutir a produção de um
artigo de opinião em sala de aula, levará em conta apenas a composição
desse gênero de texto sob a perspectiva da frase na sua relação
fonológica, morfológica e sintática, ou, no máximo, questões relativas
ao sentido gerado no interior de uma proposição, a partir do efeito de
uso da pontuação ou da manifestação da ambiguidade lexical. Esse estudo
não consideraria, por exemplo, o suporte onde o artigo é veiculado
(rádio, jornal, internet); a modalidade em que é produzido (oral ou
escrita); a identidade do autor (crítico de arte, professor
universitário, literato); ou o motivo da produção textual (se responde,
complementa ou reforça um outro artigo). Em outros termos, não faria
parte dos objetivos de uma aula formalista sobre a produção de artigos
de opinião entender as condições de realização do texto, mas apenas a
estrutura elementar interna dele (a forma). E no que isso acarretaria
para a aprendizagem dos alunos, professor/a?
A maior de todas implicações é a ideia de que os sujeitos da
linguagem ocupam o lugar apenas de reprodutor e decodificador de
mensagens, os sentidos são pré-estabelecidos à realização verbal e o
texto é entendido como um amontoado de sentenças, que possui coerência
somente a partir de seus elementos internos, de dentro para fora, sem
qualquer referência aos vários contextos em que está inserido
(sociocultural e cognitivo, por exemplo).
FUNCIONALISMO
Por outro lado, o paradigma funcionalista baseia-se em dois
pressupostos: o de que a linguagem tem funções externas a si e o de que
essas funções influenciam a sua organização interna. No ensino
funcionalista, a linguagem deve ser estudada a partir dessa interação
com os seus elementos extrínsecos.
Isso significa que o Funcionalismo
tem por objetivo descrever a interface entre os aspectos exteriores que
circundam a linguagem e o sistema interno desta, sendo, portanto, um
modelo dialético e abrangente de estudos, pois investiga como a forma
atua no significado e como as funções externas do sistema linguístico
influenciam na forma.
Nesse caso, a identidade e o papel social dos usuários de uma
língua são levados em conta ao se analisar um texto, pois, de acordo com
o Funcionalismo, ambos interferem na maneira como os próprios usuários
lidam com a linguagem. Isso é notório ao analisarmos os vários
mecanismos de utilização da linguagem no nosso cotidiano. Um deles, por
exemplo, é a marcação da polidez numa conversa. O uso de formas verbais
que constroem o grau de polidez é regulado pela relação que os
interlocutores mantêm entre si: um indivíduo, na interação com quem
mantém relação hierárquica (filho em relação ao pai, aluno em relação ao
professor), marca comumente sua fala com elementos que representam
polidez (verbos no modo hipotético, ou subjuntivo "eu“ gostaria"” para
não demonstrar autoridade; tratamentos honoríficos, como "senhor",
"doutor", a fim de nãogerar intimidade; etc.). Esses e outros exemplos
prosaicos revelam a interferência constante das condições externas da
linguagem na seleção e organização formal dos textos.
Isso quer dizer que se constitui funcionalista qualquer teoria da
linguagem que descreve um texto associando as categorias que o compõem
internamente - elementos referenciais, lexicais, icônicos, etc. - a
aspectos do entorno de sua produção e consumo - cognição social, cultura
dos interlocutores, etc.
O que isso quer dizer? Em última instância, precisamos pensar
quais os nossos objetivos enquanto educadores/as. Visamos a uma formação
humanística, voltada para a formação de uma consciência crítica dos
nossos alunos ou queremos apenas que memorizem o necessário para passar
no vestibular? Já dizia o pai da linguística, Ferdinand de Saussure: “o
ponto de vista muda o objeto”. Não podemos continuar reproduzindo
fórmulas pedagógicas ultrapassadas, em que o ensino de Português
restringe-se apenas ao ensino descontextualizado e abstrato de
gramática, desligando a língua das situações reais de comunicação.
FORMALISMO E FUNCIONALISMO
O formalismo e o funcionalismo são dois paradigmas que orientaram
os estudos linguísticos nas últimas décadas. Segue abaixo um quadro
comparativo que sumariza pontos-chave das duas perspectivas e nos
facilita a compreensão de como ambas as formas de conceber a linguagem
marcaram as teorias linguísticas contemporâneas.
*Gabriela de Paiva Gomes Albuquerque e Tiago Lessas José de Almeida são alunos de Letras da UFPE. Iran Ferreira de Melo é professor do Departamento de Letras da UFPE e doutorando em Língua Portuguesa pela USP.
ALBUQUERQUE, Gabriela de Paiva Gomes; ALMEIDA, Tiago José; MELO, Ferreira Iram. Língua: código, expressão ou interação? Revista Língua. Disponível em: http://linguaportuguesa.uol.com.br/linguaportuguesa/gramatica-ortografia/28/artigo210087-2.asp. Acesso em: 06/05/2012.
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