- Papa cria centro de estudos da língua, negligenciada pelo clero há 50 anos, desde o Concílio Vaticano II
Fé modernizada. O Concílio Vaticano II aproximou a Santa Sé dos católicos, dando fim a séculos sem reformas - Fotos de Andrew Medichini/AP |
Percebido por muitos como um Papa conservador, Bento XVI reforçou essa imagem com a criação, no mês passado, da Academia Pontifícia para o Latim.
O líder da Igreja Católica quer difundir uma língua que, há 50 anos, desde o Concílio Vaticano II, permanece praticamente restrita aos domínios do Estado papal. Voltada à formação de religiosos, a instituição vai intensificar o ensino do latim para os novos padres — que atualmente têm apenas uma noção superficial do idioma —, além de promover seu uso em conferências, publicações e mesmo em escolas e universidades.
A decisão não deve ser vista como um retrocesso em pleno cinquentenário do concílio, na opinião de teólogos ouvidos pelo GLOBO. A reforma do catolicismo promovida àquela época é irreversível, por responder a contestações acumuladas em períodos cruciais da História.
O Concílio foi uma tentativa da Santa Sé de se reerguer após duas grandes crises que reduziram seus domínios — e, consequentemente, o número de fiéis. O Cisma do Oriente, em 1054, separou a Igreja Católica Romana da Ortodoxa. E, em 1517, Martinho Lutero pregou, na porta da igreja do Castelo de Wittenberg, 95 teses que foram o momento inicial do protestantismo.
Houve, no século XIX, uma tentativa da Igreja de unificar seu discurso relacionado a problemas contemporâneos, como a ascensão do liberalismo. Mas o Concílio Vaticano I, o encontro convocado pelo Papa Pio IX, não teve força. Convocado em 1869, foi suspenso subitamente no ano seguinte, com a eclosão de uma guerra entre a França e a Prússia.
Nos anos 1900, os conflitos e crises se multiplicaram. E os fiéis reivindicavam uma orientação, de acordo com o padre Waldecir Gonzaga, autor do livro “A verdade do Evangelho e a autoridade na Igreja: na exegese do Vaticano II até nossos dias”.
— O mundo e a Igreja presenciaram vários acontecimentos que pediam mudanças, como a criação do bloco soviético, duas Guerras Mundiais, o Holocausto, o novo Estado de Israel e a eleição de John Kennedy, um católico, para a presidência dos EUA — observa Gonzaga, doutor em teologia bíblica pela Pontifícia Universidade Gregoriana (PUG) em Roma. — Estes e outros episódios deram ainda mais força ao Concílio Vaticano II, que deveria responder questões que se acumulavam há muito tempo.
A assembleia foi convocada pelo Papa João XXIII três meses após se tornar líder da Igreja Católica, em 1959. Três anos depois, o Concílio foi aberto.
Reforma chega às missas
Uma de suas decisões mais conhecidas foi a autorização para que as missas, sempre realizadas em latim, fossem celebradas nas línguas de cada país.
— Os textos litúrgicos passaram a ser traduzidos para diversos idiomas — diz o teólogo Francisco Costa, doutor em Latim também pela PUG. — Até a autorização para que línguas locais fossem usadas nas missas, havia momentos em que os fiéis ficavam perdidos. O público sabia, por exemplo, a hora da comunhão mais pelo gestual do padre do que por seu discurso.
Com a expansão do catolicismo para todo o planeta, não havia como escolher apenas um idioma para substituir o latim. Era uma situação completamente diversa à do século IV, quando esta língua fora adotada oficialmente pelo Vaticano. À época, o Papa Dâmaso I conferiu a São Jerônimo a missão de traduzir a Bíblia, escrita originalmente em hebraico, aramaico e grego.
Houve, no entanto, resistência à modernização desencadeada pelo Vaticano II.
— A Igreja francesa se dividiu. Muitos padres e bispos permaneceram celebrando missas em latim, e eles atraíam mais gente do que aqueles que adotaram o idioma francês — ressalta o vaticanólogo Giancarlo Nardi, diretor do Instituto Pátria e Fé OperaPia Romana e estudioso da Santa Sé há 35 anos. — Também observou-se, em todo o mundo, a flexibilização de outras tradições. Os padres deixaram de ficar voltados para o altar, de costas para o público. Homens e mulheres, que muitas vezes sentavam separados, passaram a se misturar. Em diversas igrejas, as fiéis aboliram o véu, que era preto para as casadas e branco para as solteiras.
Mudança de atitude com outras religiões
Outras medidas renovadoras ficaram à sombra do enfraquecimento do latim, como a valorização das conferências episcopais e de ministérios leigos — esta última decisão foi fundamental para que o catolicismo se difundisse independentemente da presença de um membro do clero, incentivando ações de seus fiéis.
O Vaticano também estendeu a mão ao diálogo com outras religiões, o que aumentou a legitimidade do Papa fora de seu rebanho.
— Os cristãos que não seguiam a fé católica romana perceberam em João XXIII uma atitude fraterna, em vez da antiga hostilidade — explica Waldecir Gonzaga. — Roma deixou de se considerar a detentora da verdade, definindo-se agora como uma serva de Deus. A Santa Sé abandonou a visão dos protestantes como heréticos e dos ortodoxos como cismáticos.
Os quatro sucessores de João XXIII participaram do Concílio. Além de Paulo VI, vieram da assembleia os papas João Paulo I e II, e Bento XVI.
— O atual Pontífice foi um consultor importante do Vaticano II, onde trabalhou em textos fundamentais — destaca Franca Giansoldati, responsável pela cobertura jornalística da Santa Sé para o diário italiano “Il Messaggero”. — Colocá-lo como um Papa conservador é uma leitura superficial. Bento XVI defende as regras e o caminho da tradição, mas sempre deixou claro que o Concílio lhe serve como uma bússola.
Nas décadas seguintes ao Vaticano II, o latim foi negligenciado na formação do clero — um problema, porque há muitos documentos papais ainda não traduzidos para outros idiomas. Daí a decisão do Pontífice de criar um centro internacional de estudos da língua.
Segundo Franca, até a ala tradicionalista da Santa Sé, a mais resistente a reformas, tem bispos e cardeais que não dominam o latim. A criação de uma Academia Pontifícia, portanto, não seria um mero favor de Bento XVI ao grupo.
Os teólogos são unânimes em achar que o Concílio não matou o latim. Se hoje ele parece extinto, seria culpa da radicalização de suas medidas nas últimas décadas.
— Houve exageros na interpretação da assembleia e no desejo de se libertar de tudo que era visto como empecilho para o povo entender e celebrar melhor a fé católica — admite Gonzaga. — Paulo VI, ao concluir o Concílio, deu à Igreja um mínimo de cantos gregorianos em latim que deveriam ser lembrados em grandes ocasiões. Mas até isso foi se perdendo, tornando-se um patrimônio quase exclusivo de grandes mosteiros, como o de São Bento, no Rio.
Giancarlo acredita que o Vaticano II foi a resposta necessária à antiga inércia da Santa Sé.
— A Igreja estava parada há 18 séculos — assinala. — Resolveram-se pendências, mas há desafios para o catolicismo. Entre elas, o casamento de gays e de padres e as células-tronco. São questões que exigirão avaliações no futuro.
_________. O latim volta à cena. O GLOBO. Acesso em: 04/01/2013. Disponível em: http://oglobo.globo.com/ciencia/o-latim-volta-cena-7164515#ixzz2GvY4ibvu.
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